SÃO PAULO:
A cidade de Presidente Prudente, no interior de São Paulo, não permite
que as travestis utilizem os banheiros públicos do terminal rodoviário.
Recorrentemente, elas são impedidas por fiscais da prefeitura de entrar
no local. Em consequência, ocorre de serem obrigadas a fazer as suas
necessidades fisiológicas na rua. Para os munícipes, uma situação
incômoda que motiva reclamações. Mas para as “meninas” trata-se de um
ato discriminatório de acordo com a Lei Estadual 10.948, de 5 de
novembro de 2001, cujo artigo 2º estabelece que constitui ato
atentatório ou discriminatório ao direito dos cidadãos homossexuais,
bissexuais e transgêneros proibir o ingresso ou permanência em qualquer
ambiente aberto ao público.
A questão foi levada à coordenadora do
Núcleo de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria
Pública do Estado de São Paulo, Vanessa Alves Vieira, que instaurou um
procedimento e enviou ofício à Secretaria de Assuntos Viários da cidade
no último dia 6 explicando que a conduta não é permitida. Mas a resposta
não chegou até agora, apesar de ter sido definido prazo de dez dias
para o município se manifestar. Segundo Vanessa, há possibilidade de nos
próximos dias ser aberto procedimento administrativo na Secretaria de
Justiça do Estado, que pode implicar multa ou advertência para a
prefeitura.
A denúncia chegou à Defensoria pelo
presidente do Grupo de Estudos sobre Sexualidade e Cidadania (Gesc),
Hélio Cruz. Ele relatou que aproximadamente 30 travestis ficam no local,
onde esperam clientes para fazer programas. “As travestis estão na
rodoviária há cerca de três meses, antes ficavam na rua Casemiro Dias,
de onde foram expulsas por policiais. Tentam utilizar os banheiros
públicos, mas são impedidas, às vezes retiradas à força pelos
funcionários da prefeitura, que argumentam seguir ordens da
administração superior.”
A documentação também foi enviada esta
semana à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
Ontem, (29/08) a assessoria da ministra Maria do Rosário procurou o Gesc
para pedir maiores detalhes e comprometeu-se a dar atenção à questão.
Hélio também relatou que se reuniu com
os responsáveis pela administração da rodoviária, subordinados ao
secretário de Assuntos Viários, Luiz Abel Gomes Brondi. Deles teria
ouvido que as travestis estavam autorizadas a utilizar exclusivamente o
banheiro masculino. Apesar dos argumentos sobre identidade de gênero e
orientação sexual, a reivindicação não teve êxito. O ativista conta que
já foi chamado duas vezes pelo Comando da Polícia Militar, que cobra
dele uma solução para o caso.
Para
a defensora, as travestis têm direito garantido por lei ao uso do
banheiro de acordo com sua identidade de gênero. “Impor a utilização de
banheiro não compatível com a identidade de gênero constitui conduta
discriminatória e incompatível com o respeito à diversidade”,
disse. Vanessa considera plenamente viável a convivência de mulheres e
travestis nos banheiros femininos. “Elas sentem-se como mulheres e agem
socialmente como mulheres e assim devem ser encaradas.” Às mulheres que
se sentirem ofendidas com a divisão de espaço, ela tem um recado: “As
travestis e as transexuais são cidadãs. É preciso entender e transmitir
aos seus filhos que a sociedade é plural e diversa, e é necessário
respeitar as diferenças”.
A assessoria de imprensa do
secretário Luiz Abel Gomes Brondi informou que a restrição ao uso do
banheiro feminino pelas travestis está mantida até que haja decisão
judicial contrária. O ofício da Defensoria Pública não seria atendido,
informou na última sexta-feira (24) o assessor Marcos Tadeu.
O processo que a Defensoria pretende
instaurar dura de seis meses a um ano por conta das oitivas das partes
da acusação e da defesa. Depois é feito parecer pela Procuradoria do
Estado, que profere a decisão. As multas estão previstas na Lei 10.948 e
variam de acordo com o porte da parte processada. “Partem de 1.000
Ufesps (Unidade Fiscal do Estado de São Paulo, cada uma custa R$ 18,44)
e chegam a 3.000 na reincidência, mas se ficar comprovado que não são
suficientes para sanar a conduta podem ser elevadas em dez vezes”,
explicou Vanessa.
Na verdade, o processo não visa ao
ressarcimento da parte que fez a denúncia. “É de interesse público e tem
finalidade de coibir esse tipo de conduta com ressarcimento de forma
coletiva para evitar o dano de forma coletiva”, detalhou Vanessa.
A defensora pública de Presidente
Prudente Giovana Devito dos Santos Rota lembra que o gênero é muito mais
amplo que a conformação física, tem a ver até com sentimento. “Talvez a
prefeitura apenas não tenha conhecimento da lei para assumir essa
conduta. Pode não ser homofobia.”
Porém, ao saber do argumento da
prefeitura do temor de que homens poderiam se vestir de mulheres apenas
para poder entrar no banheiro feminino, Giovana reage: “Bem, mas aí é
uma questão de segurança pública. Esse argumento pode ser uma tentativa
de ligar esse grupo, que já é tão vulnerável, à criminalidade”.
Para Giovana, é preciso que a sociedade
seja mais solidária, porque a pessoa é diferente, e a gente não está
acostumada a respeitar o diferente. “A família expulsa de casa, a pessoa
passa fome, é obrigada a se prostituir. É triste não poder assumir seu
sentimento, sua individualidade. Ninguém opta por ser diferente. Há
depoimentos de tanto sofrimento, que é de chorar. Que ser humano que
estivesse bem, adequado, passaria por tanto sofrimento se não fosse uma
busca pela identidade?”, desabafou.
A visão do parlamentar
A edição de ontem (28) do jornal Oeste Notícias,
na página 2, traz artigo assinado pelo deputado Gilmaci Santos, líder
da bancada do PRB na Assembleia Legislativa, fazendo considerações sobre
esta questão e propondo a criação de “uma terceira via”. “O Código
Civil é bem claro quanto à distinção entre homem e mulher, mas se as
travestis se sentirem ameaçadas em banheiros masculinos precisamos
pensar em uma terceira via que também não deixe as mulheres
constrangidas. Atualmente, os banheiros são separados por uma questão de
gênero e não de acordo com a opção sexual de cada um, pois se assim
fosse, lésbicas utilizariam o banheiro masculino”, escreveu o deputado,
desconsiderando o fato de a travesti ter identidade de gênero feminina.
Acreditando que a posição da Defensoria
Pública toma o partido das travestis, prossegue o deputado: “É preciso
respeitar a liberdade individual de todos. A Constituição Federal
brasileira foi formulada para ‘assegurar o exercicio dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, e o bem-estar’, mas não
se faz isso dando privilégios a ninguém ou mesmo fazendo concessões a
grupos ou pessoas”.
A vítima e sua condição
A travesti Leila Vasconcelos, de 27
anos, faz programas na região da rodoviária. Ela saiu de Osvaldo Cruz, a
80 quilômetros de Presidente Prudente, há oito meses. Até hoje,
precisou usar o banheiro duas vezes, mas foi impedida por fiscais, que
alegaram o fato de ela não ser mulher para a proibição. “Mas é
constrangedor usar o banheiro dos homens, entende? Também é ruim para os
homens, porque a gente chega toda vestida de mulher e fica estranho”,
observou.
Até hoje nenhuma das “meninas” que ela
conhece conseguiu entrar no banheiro feminino. “Eles ficam olhando e
parece que a gente é dinossauro ou um ser de outro planeta”, descreveu.
Leila disse que não entende essa medida porque acredita que a lei, hoje,
está mais ao lado dos homossexuais, e que isso “é coisa do passado”.
“Hoje estamos em outro patamar”, disse, referindo-se à união estável
entre homossexuais, por exemplo.
Ante essa situação constrangedora, Leila
disse que sai do discurso e acorda para a realidade. “É um choque, as
coisas estão no papel, mas na prática, não.” Para ela, a travesti que
faz “rua” já é cobrada, é vista como alguém fora da sociedade, marginal.
“Somos consideradas promíscuas, mas não é bem assim. Não temos campo de
trabalho, o preconceito é muito grande contra as travestis, por isso a
prostituição”, justificou.
Leila, formada em enfermagem, já
trabalhou na área e desistiu por ser muito discriminada. Depois disso,
decidiu se prostituir há dois anos. Assumiu a condição para a família
aos 23 anos, tardiamente, por conta da repressão, especialmente pelo
preconceito da mãe, que hoje já a aceita, a trata pelo nome social (de
mulher). “Nós somos um gênero novo, nem homem nem mulher”, sintetizou.
Tripé da homofobia
O presidente do Gesc, Hélio Cruz, tem na
defesa do grupo das travestis o seu maior desafio. Para ele, três
fatores levam à segregação. Para começar, a violação de direitos, que
parte dos familiares com a descoberta da homossexualidade e não raro
resulta na expulsão de casa. Isso leva à vulnerabilidade, com a falta de
apoio e perspectivas para a construção da dignidade. “Infelizmente, daí
vem a marginalidade, com todos os requintes de violência que um ser
humano jamais poderia sofrer”, resumiu, emocionado. “A travesti é o
escudo da homofobia. Ela está à frente de todo o preconceito. É preciso
começar a mudar o discurso a respeito desse grupo.”
da Rede Brasil Atual
por Evelyn Pedroso
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