sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Por incompreensão, travestis estão entre grupos mais discriminados da sociedade


SÃO PAULO: Travestis são pessoas que sofrem muito porque o mundo não está preparado para compreendê-las. O médico, psiquiatra e psicodramatista Ronaldo Pamplona da Costa as define como o grupo das pessoas mais marginais, não apenas na sociedade, mas também nos estudos sobre sexualidade. Os terapeutas têm muita dificuldade para entendê-las e são raríssimos os que as aceitam como pacientes. Neste entrevista, Pamplona, autor do livro Os Onze Sexos – As múltiplas faces da sexualidade humana, faz uma análise deste grupo, destacando recentes estudos sobre o cérebro humano.
O médico explica que a sexualidade deve ser compreendida do ponto de vista biológico, psicológico e social, todos interligados. Mas a diferença básica está centrada no biológico, o que já pode ser comprovado pelas pesquisas da neurociência. “No cérebro aparecem todas as diferenças entre o comportamento dos seres humanos. Existe uma vertente masculina e uma vertente feminina. Na masculina, temos homens heterossexuais, homossexuais e bissexuais. Na feminina, a mesma coisa. Só que o homem heterossexual é muito diferente da mulher hetero; o homem homo é muito diferente da mulher lésbica, e os bissexuais também são muito diferentes em se tratando de um homem e de uma mulher”, detalha.
O que podemos entender por identidade sexual e identidade de gênero relativamente aos indivíduos travestis?
Nós temos uma identidade sexual, que tem dois aspectos – um é a orientação sexual, a parte da identidade que faz com que o ser humano busque uma parceria. O outro é a identidade de gênero, que vai determinar se um indivíduo é masculino ou feminino. Só que a orientação sexual e a identidade de gênero independem uma da outra. Os indivíduos que são travestis, tanto as travestis homens quanto os travestis mulheres (muito raros, mas existem) têm uma identidade de gênero dupla, porque é um gênero masculino e um feminino mesclados dentro da mesma pessoa.
Isso explica o comportamento às vezes ambíguo de travestis?
Por essa identidade de gênero dupla, um homem travesti se sente também mulher, mas não deixa de se sentir homem em algumas situações por mais feminino que ele seja. Temos o exemplo da artista Rogéria, que se diz mulher, que se comporta como mulher, que gosta de se relacionar com homens, mas que em determinado momento da vida baixa o Astolfo (nome de registro) e ela se comporta como um homem bravo. Há travestis homens que se relacionam com mulher ou com homem e alguns até com os dois sexos. Estes seriam travestis homossexuais, bissexuais ou heterossexuais.
E seria a mesma definição para o transexual?
O transexual é um indivíduo que nasce homem do ponto de vista biológico, tem corpo masculino, se desenvolve como homem, mas sempre se sente mulher. Então, é uma pessoa que não consegue aceitar o corpo que tem, não aceita o pênis, a barba, a voz ou qualquer outro aspecto masculino, que são os caracteres sexuais secundários.
Daí a necessidade de fazer a cirurgia para trocar de sexo?
Sim, porque a única conclusão que a medicina chegou até hoje é que é preciso mudar o corpo porque não dá para mudar a cabeça. Tem de operar para mudar de sexo, seja homem ou mulher transexual. A mulher não aceita a vagina, a menstruação, as mamas porque se sente homem. Quando menstrua se sente muito mal. As poucas que acabam engravidando têm muita dificuldade na parte biológica da gestação e da amamentação.
Travestis aceitam o corpo?
Travestis aceitam a genitália, mas não aceitam os caracteres sexuais secundários. A travesti homem jamais vai fazer uma cirurgia que mude seu pênis, porque ela gosta. Em geral, usa o pênis no relacionamento sexual, mas rejeita a voz, a distribuição dos pelos, da gordura, a falta da mama. Tanto que acaba usando hormônio ou também fazendo cirurgia para colocar prótese mamária de silicone.
Então a diferença entre travestis e transexuais está na aceitação dos órgãos sexuais?
Sim, a diferença básica entre transexual e travesti é que os travestis nunca vão modificar a genitália, a não ser que estejam em fase transitória de transexualismo. Vamos supor que ele ou ela ainda não chegaram à conclusão de que são mulher ou homem por inteiro. Pode ser que cheguem ou não a fazer a cirurgia. Tanto a cirurgia quanto a hormonioterapia são tratamentos médicos que não se pode fazer sem assistência médica porque vai comprometer o organismo com um todo.
Fala-se muito sobre os perigos das mudanças feitas nos corpos para adequação à identidade de gênero.
Muitas vezes as travestis usam silicone por conta própria, se medicam sozinhas, e é um desastre porque elas fazem tudo sem a técnica que tem de ser usada e acabam danificando o corpo.
O que dizem os estudos que começam a revelar informações sobre a sexualidade?
É recente nas pesquisas médicas o estudo do cérebro humano. Até 1990 não tínhamos meios de estudar o órgão porque não havia aparelhos. Hoje em dia há aparelhos de todo tipo para entender o cérebro em funcionamento. Em relação à sexualidade, se grupos de homens heterossexuais e homens homossexuais são submetidos à exibição de filmes com apelo sexual fica claro que nos heterossexuais a região do cérebro estimulada pelo desejo é uma, e nos homossexuais é outra. Os estudos avançaram mais e mostraram que essas regiões são determinadas durante a gestação.
Isso significa que a pessoa já nasce com a sexualidade definida?
Sim, é genético. Cada um tem uma carga genética que vai promover o desenvolvimento das glândulas e do cérebro. A definição do desejo por homens ou mulheres só vai aparecer na adolescência. O cérebro vai amadurecendo e quando chega na adolescência o corpo começa a produzir hormônios. Os hormônios são relacionados com o desejo e essas regiões do cérebro começam a agir de tal forma que o indivíduo vai sentir desejo mesmo que ele não queira, porque é uma coisa biológica. Até hoje tudo o que se sabia era que essas aspectos sexuais eram todos desenvolvidos graças ao psicológico: o relacionamento do pai com a mãe, a resolução do complexo de édipo. Só que isso não faz sentido com as novas descobertas.
Então dá para dizer que a pessoa nasce homossexual ou heterossexual?
Sim, esse estudo foi publicado em 2011 por grupos que estudam o cérebro na Holanda, Suécia, Inglaterra, EUA, e vários países que têm comunicação entre si, principalmente na Europa. O Brasil tem pouco contato com esses estudos europeus, que estão avançando cada vez mais. Desde 1990 acompanho tudo e essa conclusão pode ser vista no livroSex Differences in the Human Brain, their underpinnings and implications (As diferenças sexuais no cérebro humano, seus fundamentos e implicações), escrito por Ivanka Savic, editado pela editora Elsevier, da Suécia. Os autores se basearam em mais de 130 pesquisas sobre o cérebro nesse tema, e como fruto dessa compilação fecharam o conceito de que a homossexualidade ou a heterossexualidade é algo inato.
Isso derruba todos os tabus a respeito da homossexualidade. Ou seja, não é uma opção.
O desejo fica armazenado no cérebro até a adolescência e aí brota de um jeito muito complicado. A pessoa que está sentindo não consegue explicar. Os pais, por conta das antigas teorias psicológicas, acham que são os responsáveis. Só que, na realidade, não são. Não é possível eliminar por completo o desejo. Você pode forçar a mudança do comportamento da pessoa, pode reprimir ou sublimar – os dois aspectos que a religião utiliza para dizer que “curou” o homossexual. Não é doença – foi considerado doença até 1985, mas de lá para cá, não mais.
E há alguma característica específica no cérebro de travestis?
Tem uma outra região do cérebro, que fica no hipotálamo (estrutura do sistema nervoso central), responsável pelo gênero. Todas as regiões do cérebro relacionadas com sexualidade estão no hipotálamo. Homens com identidade de gênero feminino ou mulheres com identidade masculina, do ponto de vista biológico, já nascem assim. Por isso crianças de dois anos e meio ou três anos muitas vezes dizem que não são do gênero ao qual nasceram. É o menino que diz: ‘eu não sou menino, eu sou menina’. Ou a menina que diz: ‘eu sou menino’. Isso é muito complicado. Para fechar o diagnóstico numa criança ou adolescente é difícil, é um diagnóstico evolutivo, o médico acompanha até fechar. Existem pouquíssimos centros no mundo, tem um em Boston, onde o médico atende a crianças com distúrbio de gênero. Porque também se nasce com a predisposição de masculino ou feminino. Quando se estudar a área do cérebro pelo masculino ou feminino, nos travestis e transexuais, é diferente. É um corpo de homem e no cérebro, uma identidade feminina, cabeça de mulher. Ou menina com cabeça de homem.
A identidade de gênero aparece em que momento?
Muito cedo. Um menino de três anos já sabe que é um menino. A sociedade vai ensinando e o cérebro já está mais amadurecido para a identidade de gênero, então começa a aparecer o comportamento masculino ou feminino, só que às vezes na criança a identidade vem trocada, apesar de a educação estar de acordo com o padrão. Porque o mundo só funciona com dois gêneros – o masculino e o feminino. Daí, os banheiros de homens e de mulheres. Não tem banheiro de outro gênero.
É mesmo muito difícil fugir às regras…
Sim, travestis são pessoas que sofrem muito porque o mundo não está preparado para comprendê-los. Acho que são as pessoas mais marginais que há dentro da sexualidade. Estão à margem de tudo. Porque nos estudos da sexualidade os travestis também estão excluídos. Os terapeutas têm muita dificuldade para entendê-los e são pouquíssimos os que os aceitam como pacientes.
A não aceitação tem a ver com sentimentos enraizados de uma sociedade de homens e mulheres?
Para o homem machista, ser travesti é ser menos. O homem não aceita ter seu papel de macho cumprido e ver um outro ‘homem’ querendo ficar no lugar de uma mulher. Para o machista, a mulher é menos, por isso, a travesti também é. Essas raízes são muito do passado, primitivas, da época em que o homem era tudo e a mulher, nada. Então, se deitar com outro homem e fazer o papel de ‘mulher’ é uma coisa menor.
Então por que tantos homens procuram travestis para se relacionar?
Essa sua pergunta não tem resposta. Não conheço nenhum estudo feito sobre homens que desejam travestis e a cabeça deles. Tive alguns poucos pacientes que relataram desejo por travestis, que seria o desejo de estar com uma mulher, mas com uma mulher que tenha pênis – então, é um desejo muito mais relacionado com a ambiguidade do que qualquer outra coisa. Se ele deseja um homem, travesti não serve. Se deseja uma mulher, travesti não serve. Muita gente avalia que homens procuram travestis porque têm desejos por outros homens, mas boicotam o desejo saindo com um homem que parece mulher. Mas eu não concordo. Porque o desejo por outro homem é tão profundo e direto que nada serve no lugar. Acho que é um desejo por travestis mesmo, mas não conheço estudos a respeito.
Os fato de os estudos serem tardios certamente ajudaram aumentar o preconceito ao qual os homossexuais estão sujeitos. Isso pode mudar?
Os estudos sobre homossexualidade só foram feitos a partir do surgimento da Aids. Sou de um tempo em que não tinha Aids. Ninguém no meio médico tinha interesse em estudar homossexual. No momento em que veio a ‘peste gay’, os médicos foram obrigados a aceitá-los como pacientes, e a ciência foi atrás de estudá-los. Talvez algo tenha de acontecer para que os homens que desejam travestis sejam objetos de estudo.
É muito mais raro encontrar mulheres travestis ou elas se expõem menos?
A única referência que tenho de mulheres travestis é de filme pornográfico. É uma mulher que se sente mulher e ao mesmo tempo, homem. Ela se veste de homem, tira os seios, toma hormônio para se virilizar e ter pelos, engrossa a voz com os hormônios, mas não mexe na genitália, preserva a genitália e a usa no relacionamento sexual. Tem o prazer que uma mulher tem e tanto faz que seja se relacionando com outra mulher quanto com um homem.
No seu livro, o senhor fala em intersexos. Como se explica esse grupo?
São pessoas que nascem com defeito biológico, seja tanto nos genitais internos ou externos, como seja genético, com repercussões as mais variadas possíveis. Os casos devem ser encaminhados para os hospitais-escola, porque precisa de tratamento endocrinológico, com geneticista, pediatra. São raros os casos que chegam à idade adulta sem ter havido uma correção. Mais fácil encontrar na zona rural por falta de assistência médica. Um exemplo são os hermafroditas. A criança nasce com os dois genitais malformados, e os médicos concluem que é melhor deixar a vagina do que o pênis. Só que aí, é feita uma menina que pode se revelar masculina logo cedo. Mas a medicina a fez menina. A medicina, na verdade, a fez transexual. Porque a identidade de gênero era masculina.
da Rede Brasil Atual
por Evelyn Pedrozo

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